domingo, 21 de dezembro de 2008

Mordor

"Viva em Mordor por muito tempo e você vai acabar parecido com Gollum" (1).

Acabo de ver a trilogia do Senhor dos Anéis e, como não resisto, tenho de fazer minha releitura da história-fantasia de Tolkien. Então, em leitura aleatória de posts de blogs (cheguei à conclusão que para ser um bom blogueiro, é preciso antes de mais nada ler e comentar blogs alheios, e há muita riqueza de idéias na blogosfera), me deparei com a frase acima (tradução minha). Esta frase me chamou a atenção, porque o autor tenta ilustrar o cuidado que se deve ter em não se envolver demais em coisas mundanas, sobretudo nessa nossa época de total crise de valores e de confiança. Seu objetivo não era comentar o Senhor dos Anéis, mas apresentar uma alternativa ao indivíduo que trilha o caminho da consciência sobre qual atitude adotar ao perceber que todo o sistema político, econômico, financeiro, social que nos rodeia é corrupto e mantido por uma enorme população de "adormecidos", pessoas como nós, que inconscientemente repetimos padrões de comportamentos que só servem à manutenção do próprio sistema e dos que mais ganham com ele.

Sugere o autor do blog que a evolução da consciência é um caminho a ser trilhado sozinho: não adianta dedicar esforços para tentar despertar os outros, quando ainda não lhes chegou o momento de perceber as amarras que os mantêm prisioneiros da Matriz que se alimenta da sua vitalidade e trabalho da mesma forma que vampiros do sangue de suas vítimas. Eventualmente, mais e mais pessoas despertarão para o lado "bom" da Força ...

Qual, então, a melhor postura? Como retirar poder de um sistema corrompido? Como ajudar a despertar o povo da ignorância? Como acelerar o surgimento de uma ordem mais justa e fraterna, baseada em escolhas conscientes e não dominadas pelas imposições do mercado, da política, da mídia, das religiões? Parece que não há outra postura a adotar a não ser voltar-se para si, fortalecer o poder interior, de modo a que cada indivíduo, a seu tempo, deixe de alimentar o poder externo, dominante. E para despertar os outros, é primeiro preciso despertar a si próprio e cultivar estado de consciência que ponha à mostra as amarras da existência.

Antes de mais nada, quer-me parecer que precisamos desenvolver nossa capacidade de atenção, na linha do "estar aqui e agora", "viver no presente", como escrito nas doutrinas mais antigas, secretas ou abertas, e renovado por autores recentes como Eckhart Tolle, Deepak Chopra, Andrew Cohen e outros. À atenção, adicionamos a intenção, como manifestação consciente do desejo de ser, em vez de fazer ou ter. Com atenção e intenção, podemos almejar a integralidade de nossas ações e pensamentos. Ser integral parece ser, para mim, o desafio ético do novo milênio. Creio haver fortes indícios de que a integralidade é condição para o próximo estágio da consciência humana, no qual estaremos muito mais habilitados a usar nossa intuição, em vez de nossa mente, como ferramenta de libertação do poder externo, sendo essa nossa verdadeira missão de vida.

Ia escrever sobre minha interpretação do Senhor dos Anéis, mas como isso é um blog, e num blog prefiro adotar estilo livre, espontâneo, acabei divagando. Mas deixo aqui o registro de que a trilogia adquiriu, para mim, outro significado, quando identifiquei o anel como simbolizando o ego, causa de todos os nossos males, que tenta nos dominar, atraindo-nos com a promessa de poder, na verdade falso poder, e nos mantém prisioneiros da nossa própria ignorância.
O ego precisa ser destruído como Frodo destruiu o anel, jogando-o na lava vulcânica, ao final de uma odisséia pessoal de enfrentamento dos próprios medos e expansão dos limites com vistas à libertação definitiva. Nessa perspectiva, até que o Senhor dos Anéis não está tão distante dos comentários sobre nossas amarras ao sistema corrupto e vil que nos cerca. Acordemos, pois!


Referências:
(1) Neil Kramer, "The Way of the Infinite Explorer" , blog The Cleaver (14/dez/2008).
(2) Imagem: Gollum, personagem do Senhor dos Anéis (site de origem da imagem).
(3) Imagem: Anel na lava vulcânica (site de origem da imagem).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

responsabilidade ou culpa?

“Nenhum homem é uma ilha”, disse Teilhard de Chardin, mas em muitos aspectos parece que continuamos a agir como se fôssemos isolados, cercados cada um por uma bolha individual e indevassável, separados da coletividade, do meio ambiente, da economia, da política, do resto do planeta. 

Existe o Universo e existo eu.
O mundo está aí fora e eu aqui, no meu mundinho privado e separado, com as preocupações que considero só minhas, de mais ninguém. Nesse sentido, sinto-me único, peculiar, autônomo e distinto do resto. Quero soluções para a violência urbana, pois vejo-me na condição de vítima potencial desse flagelo moderno que acentua em mim o medo de sair à rua e limita minha capacidade de interagir com a sociedade e a natureza. Mas a violência está lá, é um dado externo e fora do meu controle, e aparentemente não há nada que eu possa fazer a respeito. Posso facilmente apontar “os culpados”: os políticos que pensam em se locupletar dos recursos públicos e não cuidam da saúde nem das instituições sociais; os traficantes, que invadem a periferia com seus produtos de lucro fácil, as drogas, e lançam desafio ao poder constituído; os filhinhos de papai, alienados e drogados, que financiam a manutenção desse complexo de drogas e violência; a polícia corrupta e mal-remunerada, leniente com a criminalidade; o sistema econômico, injusto e discriminatório, que exclui importante parcela da população dos benefícios da cidadania, lançando-os inevitavelmente ao mundo paralelo da droga, do crime e da violência; a falta de fé e esperança num futuro melhor; e muitos outros. 

Nessa lista, não tenho a capacidade de me incluir, de assumir parcela da responsabilidade pelo caos social, de que a violência nas ruas é um dos aspectos mais visíveis. 
Levo minha vida honestamente (com algumas mentirinhas bobas, de vez em quando, que não chegam a desmerecer minha imagem diante da sociedade), pago meus impostos (exceto quando a pouca fiscalização permite que eu burle alguma regrinha sem importância e reduza unilateralmente a carga fiscal que me é imposta – aliás excessiva e desmesurada), vou à igreja (certo, de vez em quando, numa missa de sétimo dia ou num casamento), faço caridade (sobretudo perto das festas de fim de ano, o que reduz minha culpa e permite saborear melhor a ceia de Natal), voto com consciência (não me pergunte se acompanho a atuação dos eleitos para me representar), enfim, vivo com a consciência limpa e mantenho atividade social e comunitária. E sofro com os flagelos do mundo, que existem e se agravam a cada dia, apesar de mim. 


"Eu, responsável pelo caos do mundo? Era só o que me faltava! Já basta a minha culpa judaico-cristã, que me faz sofrer em solidariedade às chagas e maldades da história, e que nem dez anos de psicanálise conseguiriam aliviar. E agora você quer que eu carregue o mundo nas costas? Assuma responsabilidade pelo caos que os outros, bandidos e picaretas de todo o gênero, criaram? Nem pensar! "


Este raciocínio resulta de um erro de perspectiva. Continuamos considerando que somos seres especiais, à parte, isolados do resto. Recusamo-nos a incluir a nós mesmos nos processos sociais e políticos “lá de fora”. É uma posição confortável, afinal é mais fácil apontar o dedo para os outros, colocar a culpa nos políticos, e seguir a minha vida como vítima dessa situação que não criei e pela qual não assumo qualquer responsabilidade. 


Numa perspectiva integrada, no entanto, é imperioso eliminar o véu do narcisismo que nos separa do resto. O resultado é a união a um processo maior, de evolução da consciência coletiva, que ocorre desde que o mundo é mundo, processo do qual não somos observadores nem analistas muito menos vítimas, mas partes integradas e solidárias, responsáveis mesmo pelos desdobramentos que afetam minha casa, meu bairro, minha cidade, minha nação, meu planeta. 


Associar-se conscientemente a esse processo coletivo de criação parece ser o desafio do novo milênio, o próximo passo natural na evolução da consciência que é a própria vida. Essa não é uma tarefa fácil nem evidente, mas é cada dia mais necessária.