sexta-feira, 10 de outubro de 2008

confiança

Não queria falar da crise financeira. Primeiro, porque não sou economista, segundo porque fatos e versões abundam por aí. Mas é irresistível, sobretudo daqui de Washington, onde não se fala de outra coisa, além da campanha eleitoral. Aliás, a crise virou também o monotema da campanha, sem que se consiga identificar com clareza soluções apresentadas nem por Obama nem por McCain. Será que eles conseguem?
A crise dos mercados financeiros é uma crise de confiança. Coluna dorsal do capitalismo financeiro, o crédito lastreado em dívida vem há décadas mantendo padrões de consumo totalmente descolados da realidade. Toda a economia gira em torno da promessa de que títulos de dívida serão honrados no prazo. Para quê imobilizar capital num imóvel, por exemplo? Melhor fazer uma hipoteca a juros baixos e prazo longo e usar o dinheiro no consumo, movimentando assim a economia numa espiral ascendente e virtuosa. Minha dívida, ou seja, a promessa de pagamento que assinei no banco, é então transformada pelo banco em dinheiro, que é emprestado para outros que entram na mesma onda. O dinheiro é "alavancado" em fundos de ações, derivativos, "hedges" e outros títulos de nomes pomposos, todos ancorados na promessa de que as dívidas serão pagas. E e o bolo vai crescendo, crescendo, crescendo e mostrando vitalidade, riqueza e altos lucros, resultantes do próprio dinheiro emprestado. Ou seja, aqui, dinheiro é dívida; é a dívida, não o trabalho, o que gera a riqueza desse país.
E se, por algum motivo, alguns desses milhões de endividados começam a atrasar os pagamentos? O dinheiro que os bancos milagrosamente produziram, tendo como lastro os títulos de dívida dos cidadãos, começa a se tornar escasso. Os bancos retomam, sim, na justiça, boa parte dos imóveis dados em garantia dos empréstimos, mas até lá os preços dos imóveis despencaram, por conta da maior oferta, falta crédito (originado das dívidas, lembra?) para emprestar a novos compradores, e a espiral ascendente logo começa a frear e retroceder. Os bancos começam a trabalhar "no vermelho", não conseguem mais obter empréstimos para alimentar o esquema, não conseguem $$ nem mesmo de outros bancos, que passam a desconfiar da saúde financeira dos demais, e se cria um círculo vicioso. Quando um ou dois grandes bancos vêm a público declarar que têm muita dívida "tóxica", ou seja, não conseguem mais produzir dinheiro a partir dos seus empréstimos, suas ações despencam, seus clientes querem tirar de lá seus recursos, e por quê? Por falta de confiança no sistema. Tendência natural do ser humano nessas horas é querer salvar o seu. Como dinheiro não é riqueza, dinheiro é dívida, quando a dívida não é honrada, o dinheiro não existe!
O crédito é o oxigênio da economia. Sem ele, asfixiam-se as transações reais - compras de automóveis, bens de consumo pessoal, viagens, até gasolina e comida. O resultado é a recessão, normalmente sucedânea de momentos de crise financeira como o atual. Ou seja, a crise está só começando. Veja o estrago que o abalo de confiança é capaz de fazer.
Qual a saída? "Restaurar a confiança nos mercados financeiros para que eles voltem a emprestar", é o que mais se fala por aqui. Mas como? Confiança não é um conceito objetivo, racional, controlável. Pode-se levar uma vida para construí-la e basta um mau momento para destruí-la irreparavelmente. Pense em alguém que mentiu para você e você descobriu porque outros lhe contaram. Você vai readquirir confiança naquela pessoa? Imagine todo um sistema financeiro desacreditado. Você aplicaria seu dinheiro nele? As grandes decisões econômicas têm portanto origem subjetiva, emocional e imprevisível.
Mas e o governo? Acho que Bush não ajudou muito. Ao anunciar a catástrofe, só fez precipitá-la. Ao querer liderar a resposta vultosa do governo, com o pacote de 700 bilhões de dólares em recursos públicos para resgatar os ativos "tóxicos" dos bancos, revelou um país à deriva. Sem plano B, o pacote acabou aprovado "de segunda", após negociações e concessões que podem ter minado ainda mais o objetivo principal, que era restaurar a confiança nos mercados.
Serão 700 bilhões suficientes? Ninguém mais acredita. Confiança não se cria por decreto. E de onde vem esse poder fenomenal, capaz de criar, numa só penada, 700 bilhões de dólares? Será que esse dinheiro existe, ou ele está sendo criado também com base na "confiança" de que o governo sabe o que faz?
Como os Estados Unidos são a locomotiva da economia mundial, a crise que começou aqui logo se alastrou para o mundo. Sem poder resolvê-la aqui, agora o governo Bush vai reunir autoridades financeiras dos principais países (talvez até convidem o Brasil) para buscar uma solução coletiva e urgente. Provavelmente pensam em socializar o prejuízo, sob o argumento de que, se não pagarmos a conta para restabelecer o sistema funcionando, nós sofreremos mais, já que somos periféricos e dependentes.
Os mercados financeiros são uma grande ilusão. Circulam diariamente bilhões de dólares que nunca existiram e provavelmente nunca existirão, a não ser na ficção de contas feitas com a promessa de lucro fácil e nenhum esforço. Talvez estejamos assistindo, sim, ao fim do capitalismo financeiro mundial. E com ele o fim da liderança norte-americana. Mas o que a sucederá?

3 comentários:

RAFA disse...

Ótimo texto, Tom. Acho que deu pra observar boa parte desses pontos no último debate. Nem parece um país em crise: um candidato fala em pagar todos os mortgages, o outro em universal healthcare. É no mínimo engraçado.
Mas, como bom weberiano, acho que o grande responsável oculto por essa crise é essa cultura de consumo excessivo, de grandes SUVs, das jóias de brilhantes dos rappers, do "get rich or die trying". Nem o próprio capitalismo aguenta tanta comilança.
Aguardemos as cenas dos próximos capítulos...
Abraços!

Unknown disse...

É verdade, Rafa, tudo o que vemos é decorrência dos "padrões insustentáveis de produção e consumo", bandeira que levantávamos desde a Rio'92. A questão é, uma vez aliviado o crédito para os brasileiros e ampliado o consumo interno, ainda bastante reprimido, se não estaríamos copiando no país os mesmos padrões insustentáveis que procuramos denunciar...

Unknown disse...

Oi Tom,

Ai de mim... se você não entende de economia e pode produzir este texto, o que direi de mim mesmo, não sei nada de economia, e me vi metido no meio da confusão, só porque fiz uma viagenzinha ao país vizinho.

Excelente texto, concordo plenamente com você, quanto à análise feita sobre o capitalismo financeiro, e será que a antecipação da notícia não foi uma jogada de marketing do BUSH (republicanos), e depois a proposta de solução como salvação do mundo e a possível angariação de alguns votos para o McCain? E o tiro saiu pela culatra... ou o problema era maior do que suspeitaram ser? Não sei nada de política mundial e tampouco sobre política americana. E estou aqui falando.... blá, blá, blá...

E como o Rafa falou no coment dele, o capitalismo está se matando. Eu já ouvi/li, que o capitalismo é a maior e pior religião que existe, ele é e será a maior doença do século.

Hugs,
Itamar Matos (Ita)